sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Sobre árvores, quadros, forcas e corações

Eu disse que iria comprar um campo de futebol. Riram, já que não gosto de futebol. Confesso que é uma tal felicidade ver meus amigos rirem das minhas ideias mais absurdas. Mas que absurdo há nas minhas ideias? Eram ideias grandes, utópicas, mas jamais absurdas como as ideias deles de se casar e ter filhos. Mas, quanto à minha idéia de comprar um campo de futebol, sei que não ririam se soubessem que eu plantaria uma floresta. Mas riram. Sim, meus amigos riram quando eu disse que o motivo da adquirição do campo de futebol. Como sempre, amando ou não, respeitando ou não, prezando ou não, eu não dei a mínima às opiniões alheias. Eu sempre fui do tipo que nunca se importa com nada nem ninguém. Não que eu seja algo do tipo céptico que nega a tudo e a todos, mas eu fazia mais a linha de não se importar com opiniões que fossem prejudicar minhas ambições. Eu era do tipo que vivia no modo “foda-se” e jamais conseguia encontrar o botão de desligar isso.
E eu decidi que compraria o bendito campo de futebol e o faria minha floresta particular, já que as públicas já nem eram mais florestas. Não exatamente uma floresta no sentido amplo da palavra, seria mais um bosque mesmo, mas meu imaginário com senso de grandeza queria enxergar uma vasta floresta, por assim dizer. Eu queria aquela grandiosidade toda para mim e aos meus cuidados, já que o que estava aos cuidados alheios era mais abandonado que o meu coração.
Pensei comigo: “Floresta é algo tão grande quanto sentimentos. Se posso privatizar uma floresta só pra mim, por que não os sentimentos?”. Nós chegamos a um ponto da sórdida existência em que, depois de tantas decepções, desistências, rejeições e lamúrias e queremos nos trancar em nosso próprio mundo, comprar parte de mundo lá fora e criar um novo mundo. É algo que, depois de um tempo certo vivendo tudo o que há a viver, queremos , já que vemos que nunca tivemos sinceramente, acumular sentimentos em quadros, em vários e inexistentes esquadros, e fixá-los na parede e, enxergar platonicamente o invisível. Pegar o que nos faz mal, e ao invés de quadros, pendurá-los em forcas, altas forcas que jamais tocarão o chão. E, com uma pseudo exaustão por tudo isso, sentar-se à sala, abrir um bom vinho, olhar todo depósito de sentimentos à vista, e chorar; chorar e dizer: “Estes não são os meus sentimentos; são forjados, acumulados e comprados pelo meu senso de egocentrismo que quer ter o que não pôde viver”. E descobrir que sentimentos, assim como florestas, são algo grande demais, levam tempo e, por mais que queiramos, não serão apenas nossos.
Mesmo sabendo, eu queria porque queria. Esse meu querer era algo incessante que já me rendeu boas quedas, perdas, aprendizagens e ganhos, bons ganhos. E o fato é que querer não é poder; querer é não inquietar o anseio até se realizar. Porque ter e poder são algo fácil, a melhor parte está no percurso a realizar. E eu tinha tudo em mãos: uma conta bancária (não daquelas suíças, mas uma brasileira razoável) e um campo de futebol abandonado ao lado de casa. E claro, as protagonistas do cenário, as mudas de árvores, eu compraria algumas de um fazendeiro que eu tinha certo apreço.
Quem, do lado de fora, me visse com tamanha ambição e, na visão alheia, desperdiçando dinheiro, diria o quão fútil, inútil, arrogante e “meridiano de GreenWich” eu era. Era só um ponto de vista. As pessoas lá fora tinham ambições do tipo ter um carro do ano, uma casa enorme, uma casa de praia, ações na bolsa de valores e eu só queria a minha floresta particular, que mal tem? Se eu tinha tudo o que as pessoas lá fora queriam? Claro que tinha, mas não me importava. Não me valia ter o carro do ano se eu mal saía de casa. Não me valia ter uma casa enorme se meu quarto era sempre vazio. Não me valia ter uma casa de praia se nem gosto de sol e só ia até lá em dias nublados. Nem me importava com as minhas ações na bolsa de valores; o que eu ganhava com aquilo eu doava para uma conta de uma instituição de crianças com câncer. E eu sou arrogante? O mundo é o mais arrogante e vem querer me julgar como tal  e qual sendo que eu fico tentando (em vão) consertar os erros que ele comete próximo à mim.
Preciso ressaltar que aprecio o que conquisto com o esforço próprio; meu orgulho muitas vezes impede certas ajudas. E foi assim com a floresta: eu, com as próprias mãos e pés, plantei cada árvore. Cuidei, zelei e protegi cada uma como se fosse um filho quem saiu de mim. Aquelas árvores eram minhas filhas, saíram de mim, das minhas mãos.
Crescer é algo que dói; dói em quem lhe deu a vida e dói na vida em questão.  Quando eu cresci doeu muito. Doeu em meus pais também, mas não os machucava; era uma dor de ver meu crescimento, por perder o meu tempo de criança que jamais voltaria, mas essa dor se amenizava com o orgulho de ver a boa alma que eles me tornaram. E as minhas filhas estavam crescendo debaixo das minhas pálpebras. Eu sentia a dor de vê-las crescer a cada dia e de saber que aquele dia jamais regressaria, mas o meu orgulho por ver o crescimento da minha cria que tanto zelei, protegi e cuidei, amenizava jubilosamente qualquer dor.
Meus olhos reluziam ao ver as folhas que cresciam e caíam, Aquelas folhas que caíam eram páginas escritas que um dia eu escrevi. E quanto às flores... Quem se esqueceria das flores? As flores eram o presente que as minhas árvores me davam assim como eu entregava o boletim com notas máximas para os meus pais. Borboletas se camuflavam e contrastavam entre as árvores, criando mosaicos.
Quando o vento gelado cortava sem piedade os braços das árvores, elas choravam folhas. E desse choro, nascia um vasto mar de folhas vermelhas ao chão. Era o sangue das minhas filhas se renovando. E quando vinham novas folhas, novas alegrias, e assim por anos e anos.
Todas as noites eu ia à minha floresta, abraçava uma por uma e lhes desejava boa noite. Mas, em uma dessas noites, eu escutei uma delas me chamar pelo nome. Não temi e respondi; mas, poxa vida, eram tantas árvores que jamais adivinharia qual delas me chamava. Notando meu péssimo senso de localização, ela ventou-se ferozmente afim de que eu entendesse sua localização.
-Escuta; seu coração parou de chorar
-Oi? Perdoe-me. Como disse? –Questionei, já que não havia entendido
-Seu coração; parou de chorar
-Ele, ao menos, estava chorando?
-Ele sempre chora quando nos abraça pra desejar-nos boa noite
-E... como sabe?
-Minha vida é presa à terra, terra na qual, suas mãos me  puseram, e embora você tenha pés, o que é algo invejável entre nós, você não está em plena liberdade; e então seu coração chora
-E agora, meu coração parou de chorar?
-Até então, sim; mas você sai daqui, se joga na cama, e morre. Você se deita na cama e chora incessantemente e internamente porque você criou uma autodefesa contra sentimentos. Você se permanece, para o mundo todo, em um estado de neutralidade, nem ameno, nem extremo, neutro apenas. Fechou-se na neutralidade, porque já sofreu demais quando não conseguia sentir ou fazia questão de sentir pouco e insuficiente, ou quando sentia os extremos, os mais fortes e verdadeiros sentimentos e não recebia reciprocidade, só decepção.
-Sei disso, por isso aprendi que decepção só existe quando se criam ilusões; já não mais me iludo, sinto esperança ou ansiedade. Eu apenas vivo; vivo porque tenho que viver. Eu não espero, nem sei o que eu quero da vida além de viver
-E os seus extremos?
-Eu os enterrei debaixo das suas raízes
-E não mais viveu...
-Claro que vivo! –bradei. Eu vivo o que quero viver
-Ultimamente você só tem vivido para nós e por nós. Cada um precisa viver a vida que lhe foi concedida. Você precisa para de se camuflar entre raízes de árvores; suas folhas cairão e não mais nascerão. E o que acontece se cairmos? Se nos cortarem, se adoecermos, se morrermos?
Não, não, não, aquilo não era real. Jamais! Jamais,  em sã consciência, uma árvore me veria por dentro e faria uma sessão de psicologia comigo.
-Chega! –gritei. Vai dormir, vai!
Ela não mais respondeu. Abri os olhos, com receio, e nada.  Mas eu fiquei ali jurando pra mim que a ouvi falar comigo. Só sei que me deitei à cama e, como ela havia dito, chorei. Chorei porque eu percebi que havia chegado ao tal ponto da minha vida de colecionar sentimentos em quadros na parede e, o que me fazia mal, em forcas intocáveis. E eu me deitei à cama e vi meus quadros vazios; sim, vazios; não havia e nunca houve sentimentos ali. Os verdadeiros sentimentos eu não podia colocar em molduras, só podiam existir no meu coração.  E aquelas forcas vazias... Os sentimentos que me faziam mal eu não podia enforcá-los, eu só conseguia amarrá-los entre as entranhas. E quando eu sentia vontade de me fatiar com uma daquelas belas facas reluzentes da minha coleção, e tirar tudo o que havia lá dentro, jogar na banheira com álcool, esterilizar e organizar tudo lá dentro de volta. E foi aí que eu descobri que, de fato, meu coração chorava.
No dia seguinte, fui ao quarto de ferramentas e tomei a moto-serra. Aquilo faria meu coração chorar ainda mais, mas não mais. Eu percebi que privatizar árvores era tão inútil quanto os meus quadros e forcas sentimentais. Abracei cada uma delas, beijei-lhes a casca dura e fria. Senti um abraço de cada uma delas e o agradecimento, de ambas as partes, pelo que aprendemos reciprocamente. Foi a primeira vez na vida que senti o que era a tal reciprocidade. Eu que tinha pés, mas me privava da liberdade por causa de um coração que chorava; e aquelas árvores que, mesmo enraizadas ao chão, sabiam viver os amenos e extremos, ao contrário de mim, que os neguei e troquei por uma neutralidade mórbida.
Cortar aquelas árvores significava para mim que não mais privatizaria em silêncio tudo o que sentia. Eu não mais queria ficar vivendo em uma casca de árvore negando e fingindo para o mundo que nada sentia. Eu queria romper minha casca e mostrar ao mundo o que me fazia chorar, rir, morrer, acordar, rejeitar e amar.  Eu não mais sentiria medo de sofrer por forcas ou me exultar por quadros em esquadros do mundo. Eu agora, só tinha na parede pedaços da minha casca para lembrar que quadros e forcas não me deixavam me livrar dela. E que agora a minha casca rompida só servia para me lembrar que se sufocar em si é o mesmo que morrer.



Nenhum comentário:

Postar um comentário